Era um quarentão que beirava os cinquenta, e que tinha pêlos no peito tal qual um texto escrito com Faber Castel velha. Usava religiosamente suas camisas de botão surradas, como que se lhe desse prazer parecer com os pescadores de Mulheres de Areia. Aliás, pescador ele era, desses de antigamente, que não troca o mar por mercado algum. Passava mais tempo nas águas do que em terra, onde gastava horas remendando redes ou cuspindo na faca com a qual matou a boneca de pano preferida de sua ex-namorada.
No Oceano, sempre que o trabalho de desabitar peixes lhe dava uma trégua, desengavetava seu bloco de papel e seu lápis gasto pelas aparagens a facão. e começava a escrever sobre as coisas da vida. Quando era vez de mar bravo, que joga muito, escrever lhe trazia mais prazer que mar calmo. Fazia questão de levar o balanço pra caligrafia, e depois era capaz de gastar grande tempo analisando o reflexo do movimento da embarcação nas letras escritas por ele na folha de papel. Era como se as águas estivessem escrevendo com ele, uma co-autora que ele pagava qualquer preço pra ter.
Já tinha escrito sobre tudo nesta vida: sobre a morte, o amor, a solidão, saudade, a guerra. Escrevera até sobre o que nunca viu, construindo em alguns casos um arcabouço de asneiras que lhe rendiam um olhar desconfiado dos seus companheiros de trabalho, que cochichavam entre si o suposto estado de caduquice do velho. Para se ter o tom do problema, por onze vezes chegou a descrever o Congo como o Jardim Botânico, sem nunca ter visitado ambos. Fidel nunca lhe fora presidente algum. e sim um capoeirista mal fadado do Mercado Modelo.
Sempre que voltavam do mar, era o mesmo ritual: forçava seus homens a sentarem na areia à beira-mar, e lia para eles o que tinha escrito. A platéia aplaudia sempre, com a empolgação de pescadores cansados porém. Nunca pensou em publicar nada daquilo, a leitura para os trabalhadores já lhe bastava porque achava que não conhecia a língua portuguesa como deveria. Sempre que lia em algum lugar um texto bem escrito, recheado de palavras desconhecidas, mais ele se contentava com a leitura coletiva que realizava quando chegava da pescaria.
Assim foi até o dia em que a mulher de um de seus homens chorou enquanto ele lia um de seus textos. A causa verdadeira do choro, a saudade do companheiro que estava longe de casa há dias, pouco importou diante da interpretação que o Marujo deu a ele: seu texto emocionou alguém, sem nem ser pesca de mar bravo. A partir desse dia, ele nunca mais leu seus textos na praia, sem depois distribuir cópias aos quatro cantos da Vila.
2 comentários:
Enfim uma expressão que tipifica você: quantos peixes você já desabitou por essas andanças? HUIhaeuiea!
Grande abraço.
Amore,
Adorei seu blog, bem vc mesmo!
Sempre estarei por aki espiando seus textos, suas impressões.
saudades...
bjoks
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