Mesologia

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Questão proposta: Sobre uma mesa, havia três objetos: uma caneta, um molho de chaves e um passaporte. A partir dessa visualização, escreva uma redação em estilo livre, que ponha em xeque a credibilidade da marca de canetas Bic.
Sobre uma mesa, havia três objetos: uma caneta, um molho de chaves, e um passaporte. Devo ter essa cena em mente por conta da ilustração da capa de algum jogo de tabuleiro que não lembro exatamente qual. Mas eles estavam na mesa, garanto.
Até onde se sabe, chaves servem para abrir portas. Um monte delas, para abrir um monte de portas. Caneta para coçar ouvidos de cêra, dar autógrafos e riscar a última folha do caderno. Já o passaporte, bem o passaporte é para quem prefere não correr parte dos riscos que Sol correu em América. A partir dessa descrição, podemos tentar inferir quem era o dono da mesa, quais eram os seus hábitos, suas preferências, suas crenças, suas paixões, afetos e desencantos. Como? Cheira a tarefa impossível, né? Mas e daí? Nunca acreditei inteiramente naquele lance de grafologia mesmo...então que eu analise a mesa, adotando a premissa que os objetos listados eram todos de um único dono!
De início, eu fico tentando lembrar qual magnata carrega várias chaves assim, de forma acumulada, tal qual carcereiro. Para falar a verdade, gente rica nem tem tanta porta para abrir, prefiro acreditar que estas se abrem diante de que tem dinheiro, por si próprias ou por ação de serviço de portaria contratado. Decididamente, não sei por que, molho de chaves me parece coisa de pobre. Primeira inferência: o dono daquela mesa provavelmente idolatrava o tal do Zé Bim.
Caramba, mas classe média tem passaporte? Minhas referências vivenciais de um ambiente de aeroporto se resume a apenas uma experiência, e tento abusar da memória para puxar dela um passageiro, uma passageiro apenas, que carregasse um molho de chaves além de passaporte. Desloco a lembrança para os noticiários registrando o apagão aéreo, aquele monte de gente superlotando os halls dos aeroportos, e não me chega à mente nenhum molho de chaves, absolutamente nenhum. O que um sósia de carcereiro faria com um passaporte daqueles? É justamente quando a ausência de respostas para essa pergunta parece me deixar num terreno baldio, que me surge em rompante a figura do traficante internacional, que precisa ter desenvoltura nos hábitos proletários e de elite. Vale comentar uma particularidade do ser marginal em nossas sociedades ocidentais: alguém já notou o quanto os nossos ladrões, assaltantes e traficantes são cada vez mais encerrados nesses rótulos? Excetuando os Leonardos Parejas da vida e outros bandidos boa praça que vez por outra aparecem nos programas de meio dia na TV, é díficil imaginar um indivíduo de comportamento desviado se relacionando com seus entes próximos na sua casa, como pai de família, na sua escola, por que não no seu emprego, na sua igreja. Essa dimensão humana, cotidiana e corriqueira é de difícil acesso para as representações que possuímos do que seria um marginal. E no bojo dessas características não imaginadas, vai à reboque a classe social de um ladrão profissional, que vive disso. Por mais que possamos supor que um assaltante de banco carimbado deve ter uma quantia considerável acumulada em sua conta, é sempre complicado enquadrá-lo, seja no xilindró, seja na escala econômica que usamos para segmentar socialmente as pessoas. Portanto, caso o sujeito da mesa seja mesmo um traficante internacional, não há contradição alguma entre as chaves e o passaporte, já que a fluidez da classe social de sujeitos desse tipo admitiria dois elementos aparentemente conflitantes.
As chaves lhe dariam acesso aos depósitos da sua mercadoria, aos apartamentos nos quais ele se encondia em tempos de barra suja, às celas onde alguns de seus subordinados estariam presos e a alguns gabinetes de Brasília. Traficante que se preza detém o poder de abrir e fechar acessos, prender e libertar vidas e, acima de tudo, gerencia a lojística do seu empreendimento.
Por fim, a caneta nos informa que ele ainda produz manuscritos, em pleno tempo do Palm. Admitindo que textos escritos à caneta são coisa praticamente extinta em nossos dias, resta-nos a tese de que a caneta serviria para pequenas anotações, produção de lembretes, registro de observações rápidas, que o auxiliassem na memorização de possíveis inimigos, eventuais devedores e clientes em potencial. Criminoso de alto escalão limpa ouvido com caneta? Será? Deve limpar, né? Não em público, mas deve limpar. E dá autógrafo? Acho que não, ou pelo menos prefiro acreditar que ainda não.
Assim, está esboçado o suposto perfil do dono daquela mesa. Alguém que transita com facilidade entre a pobreza e luxo, que viaja a negócio, mas que ainda assim anota coisas à caneta, e que tem sob sua responsabilidade o acesso à alguns ambientes estratégicos. A sua personalidade é marcada pelo perfeccionismo irritante, pela liderança inata e pelo poder de gerenciamento que lhe sai pelos pulsos. Fico imaginando que pessoas como essa é que se tornam, já em tempos de escola (se é que pessoas como essa frequentam escola), os líderes de turma, os chefes dos grupinhos, os conquistadores das meninas, o pupilo dos pedagogos de plantão. Fico a imaginar a merendeira desses indivíduos, que a despeito de suco de maracujá, um misto frio e biscoito qualquer, muito provavelmente carregaria os mais saborosos itens adquiridos com os ensinamentos que a rua traz.
Discursos mais conservadores apontariam personalidades desse tipo como um "grande desperdício", já que um indivíduo com traços tão proveitosos poderia estar utilizando-os a serviço do bem-estar coletivo, e não da criminalidade. Mas vai saber, caso tivesse de paletó e gravata, o nível de corrompimento de seus atos seria mesmo reduzido? E cobrar isso do traficante internacional não seria deveras uma rigidez hipócrita, já que os exemplos de "cidadãos de bem" que efetivamente trabalham pela melhoria das condições de vida de seus semelhantes são cada vez mais raros?
É isso, querida professora. Espero não ter me delongado muito no exercício proposto, e nem ter me distanciado do objetivo primordial da atividade, que aliás, só a senhora sabe qual é. Termino a minha redação assinalando apenas mais uma coisa: estou pensando o que conteria a mesa do anti-herói. Depois escrevo.
Hugo de Assis.

5 comentários:

Nani disse...

Ansiosa p/ saber o que há na mesa do anti-herói...
Queria escolher uma passagem, mas aquieto-me ao medo de reescrever o texto.
Só pra variar, amei. E ponto.

Marta disse...

HUGG
ce escreve bem.. e de forma interessante/instigante...
parabéns!!!

Marta disse...

só uma crítica, seus textos são longos, às vezes dá preguiça....rsrsrsr
prefiro estar com bastante tempo e às vezes , saco...srrsrsr
mas eles são ótimos!!

Unknown disse...

Você é um gênio.
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Meu raciocínio infantil apenas me permitiu imaginar que a pessoa em questão estava prestes a viajar, tentou escrever um bilhete - a ser pregado na geladeira, na porta, ou em qualquer lugar, avisando que as chaves estariam embaixo do tapete ou no vaso de planta do hall do prédio, e foi mal-sucedida porque a bic simplesmente falhou.

*raciocínio infantil? quem dera. crianças tem muito mais imaginação*

Tá, mas se a pessoa tentou escrever um bilhete, onde estaria o papel?

Provavelmente amassado em baixo da mesa, ali atirado durante o acesso de raiva do viajante atrasado por conta de uma falha daquela merda de Bic.

Indo mais além, poderia até dizer, que, quem sabe, o ser em questão não teria tentado escrever o recado singelo na própria mesa? Talvez ele seria mais bem-sucedido se usasse um giz.


*raciocínio infantil? quem dera. crianças tem muito mais imaginação*(2)

Mas no fim das contas, ele não perdeu o vôo. Atrasou 18 horas e foi transferido para Guarulhos.

Unknown disse...

the bic is on the table.