Domenico e a canga rosa.

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Uma canga rosa, quando confeccionada, nunca pode imaginar os reais impactos do seu uso. Em parte porque cangas rosas não são capazes de imaginar coisíssima alguma e em parte porque, ainda que fossem, elas são roupas de praia e, enquanto tais, servem prioritariamente para cobrir os corpos das moças que vão à beira-mar com trajes próprios apenas para este tipo de ambiente. 

Quando muito, agrega-se a elas uma função de esteira, acessório protetor, pra quem quer deitar na areia sem necessariamente se amilanesiar com a farofa quente. 

Uma canga rosa é, em primeira e última instância, uma canga rosa. E disso pouco pode fugir! E mesmo sem nunca ter despendido tempo com este tipo de raciocínio primário, Domenico jamais havia esperado grandes coisas de uma canga, rosa ou não. 

Pelo quarto ano seguido, o homem de 37 anos escolhera a praia de Itacaré para festejar a virada de ano e curtir um pouco das suas férias de janeiro. O litoral Sul da Bahia é marcado por praias exuberantes, repletas de natureza selvagem, onde preserva-se certa áurea de território inóspito, apesar do grande número de visitantes. Belos visuais, mares calmos e cristalinos e paz só encontrada distantes das sinaleiras de trânsito: era a busca de Domenico quando decidia ir para aquelas bandas.

No segundo dia do ano e quinto dia de passeio, Domenico, com uma barriga enorme e seu surrado boné branco da empresa de Seguros da qual era funcionário havia 15 anos, caminhava ao lado dos óculos escuros da sua irmã e do short vermelho da sua filha mais nova. Repentinamente, teve a vista assaltada por uma canga rosa estendida sobre a areia e só após aproximar-se pôde identificar sobre ela um belo corpo feminino com idade aparente de, no máximo, 23 anos. 

Divorciado no dia da morte de Raul Cortez, àquela altura mantinha um relacionamento às escondidas com uma das funcionárias do setor de comunicação da Seguradora, desde a sua promoção à gestão da área. Classificado como inadequado, aquele caso era escondido e desacreditado demais para constrangê-lo a preservar princípios de fidelidade e respeito. Como faz a maioria dos homens vulneráveis a rabos de cangas, arrumou uma desculpa esfarrapada para as suas companheiras de caminhada seguirem rumo sem ele e esperou a moça terminar o que parecia ser uma sessão de fotos particular. Só então caminhou 17 passos em direção ao local e, diante dela, parou. Embasbacado, emudecido e perplexo! 

Mulheres bonitas Domenico já tinha visto aos montes ao longo da vida. Apesar de nunca ter nem chegado perto do desempenho de seus companheiros mais mulherengos de faculdade e trabalho, constavam em seu currículo amoroso algumas belas moças que, encadernadas e com data embaixo, davam um belo calendário de oficina. Mas nenhuma delas se comparava àquela figura que, de tão bela, lhe doía o olhar. O castanho dos olhos era tão claro que saía vermelho na maioria das fotos tiradas em máquinas digitais e se confundia facilmente com verde aos olhares menos atentos. O tom de pele rosado pelo sol contrastava com os cabelos onde loiro e castanho dialogavam harmonicamente e se entendiam num resultado avassalador. No pescoço, colares prateados, entrelaçados e sobrepostos. No braço esquerdo, pulseiras extravagantes e balangandãs típicos das joalherias do côco. Não tinha a magreza das passarelas nem o tamanho das esculturas de Ondina. Tinha formas na medida exata, que as faziam mais bonita que o pôr do sol daquela praia. 

Domenico estava visivelmente sem jeito. Se aproximou e agora não sabia o que dizer. O pouco de desenvoltura que tinha nas abordagens de conquista havia lhe deixado na mão. Ela permanecia deitada sobre a canga, usando um óculos marrom de Julia Roberts, daqueles de lentes em degradê. 

Notando a aproximação do homem, perguntou com voz meio incomodada, meio temerosa: 

- Tá procurando alguma coisa? 

Domenico gelou. Era exatamente a mesma voz da mulher que aparecia em seus sonhos sempre que ia dormir bêbado. Sua psiquiatra já tinha o diagnóstico: era o inconsciente configurando e anunciando o modelo de mulher que, no fundo no fundo, ele sempre quis.

- Não, não! Quer dizer, tô! Não, não tô! 

Sem entender muito o embaraço do homem e já se lamentando pela quantidade de assombrações que lhe apareciam a cada vez que aumentava as suas rezas, a mulher resolveu adiantar as coisas: 

- Olha, se você resolveu se aproximar de mim porque me achou bonita enquanto passeava pela praia, vou logo alertando para dar meia volta. Você não foi o primeiro e infelizmente pra mim, não vai ser último. Mas o fato é que eu detesto ter que enxotar senhores do seu tipo. 

Com a sensação de ser o homem mais ridículo daquela praia, Domenico tirou do bolso uma desculpa que só o desespero é capaz de fornecer:

- Não, não é nada disso! Eu estou interessado em sua canga! E disposto a pagar qualquer preço por ela.

- Ahn? Como assim? A canga é minha! 

- Eu sei disso. Por isso vim aqui falar com você. Se fosse da praia, eu já tinha pego e seguido meu rumo. Quanto você quer por ela?

- Eu não quero vender a minha canga! Pra que o senhor quer?

- Não me chama de senhor.

- Pra que um homem quer comprar uma canga? 

Ele ainda não havia pensando nisso. A mentira ia se desenvolvendo à medida que a conversa também ia. E assim ele sabia que não chegaria muito longe. Tirou da cartola uma resposta à queima-roupa, resolvendo ser sincero em um momento em que a sinceridade já estava muito longe dali. Forjou então uma verdade híbrida, daquelas que, depois de ditas, ninguém destitui mais: 

- Pra...pra...pra eu lembrar de você pro resto da vida! 

O olhar da moça para Domenico adquiriu contornos definitivos de surpresa. Estatalados, seus olhos denotavam um misto de indagação e confissão pouco solene de que havia gostado da maneira como aquilo foi dito. Seja qual fosse o motivo pelo qual o homem usou essa resposta, explodiu em cheio na caixa do peito da dama da canga. 

- Eu não quero ser mais um cara a te incomodar. Eu não planejo ser um incômodo pra você. Mas sua beleza me falou muito e eu só te peço isso: me vende essa canga pra eu levar comigo pro resto da vida a lembrança boa da caminhada de hoje. Eu quero ver você toda vez que eu olhar pra ela.

- Você é louco! 

- Me vende a canga! 

Ainda calada, ela já se sabia vencida àquela altura. Respostas bem encaixadas e frases utilizadas no momento exato têm poder para reverterem situações das menos flexíveis. E aquela trama era uma prova disto: 

- Eu não vou te vender, eu vou te dar! Não pergunta por que, mas eu tenho certeza que você está sendo sincero – disse antes de se levantar e recolher o pedaço de pano. 

- Obrigado, moça! Muito obrigado! – respondeu sério, seco e determinado.

Catou a canga estendida pela mulher com os braços esticados e saiu sem olhar para trás. Havia se apaixonado em frações de minutos e agora levaria aquilo por toda vida. O mesmo objeto que de longe lhe convocou a atenção seria o grande responsável por imortalizar as sensações que despertou. Para dali em diante, Domenico decidiu terminar o seu rolo com a funcionária e só voltar a viver casos de amor quando sentisse exatamente aquilo que estava sentindo na sua caminhada de volta para a casa alugada. Relembrou que, com paixão, tudo tinha mais graça. 

A jovem levantou em seguida, seguiu rumo contrário e nunca mais se viram. 

Na casa de Domenico, irmã e filha não entenderam nada quando o barrigudo entrou pela porta com os olhos carregados de brilho e o tecido enrolado no pescoço:

- Hoje sou eu quem cozinha nessa casa!

6 comentários:

Nani disse...

Muito bom, bobitos. Muito bom mesmo!! Como sempre de parabéns... e por sinal, "amilanesiar com a farofa quente" é ou não é sua cara esse tipo de frase? hauhauahua

adooorooooo o jeito que vc mistura a forma de escrever!

bjus

Unknown disse...

Qual o preço de amenizar uma existência frustrada?

Qual o preço de libertar Domenicos de uma rotina amorosa convencional para uma existência superiormente interessante?

Por isso que Deus não dá asa a cobra.

Se essa lindeza e graça eu tivesse, eu ficaria rica vendendo cangas rosas.

Márcia Liguori disse...

Eu não sei porque me surpreendo cada vez mais. Caramba, falo sério: é um talento maravilhoso que vc tem!!! Vc tem q aproveitar isso!!!

"Divorciado no dia da morte de Raul Cortez" ; "homens vulneráveis a rabos de cangas"; "tamanho das esculturas de Ondina"... hehe só vc mesmo!

Ah, concordo totalmente com Domenico, só vale a pena quando falta o ar e nem sempre é preciso muito tempo pra sentir isto...

Unknown disse...

Tenho um imenso orgulho de ter você como amigo...

João disse...

Cara, não é a toa que seu sobrenome é de Assis.

Dinny disse...

meu primeiro contato com o blog foi esse conto e então me peguei lendo todos os outros sem conseguir parar. Gostei demais Huguinho. Parabéns.