A última geração da Terra

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- Professora, a média aritmética dos elementos da terceira questão da prova é 3,14. Com todo o respeito, a senhora está tomando como correta uma resposta equivocada.

Com essa frase, eu havia encerrado a minha participação na última aula de Contabilidade de Custos daquele semestre. Não poderia imaginar que, ao sair pela porta, uma notícia desconcertante chegaria até a mim no corredor, a poucos metros da sala. 

Meu telefone vibrou no bolso da bermuda. O torpedo de um grande amigo se encarregou de me trazer a novidade: "Velhão, lascou tudo! Eles decretaram arbitrária e definitivamente a redução da taxa de natalidade do mundo para 0. Isso significa que, a partir de hoje, ninguem mais nasce, contrapondo Saramago, o inventor da greve da morte".

Dentre os desdobramentos óbvios daquela notícia, me veio à mente o talvez mais evidente: se ninguém mais haveria de nascer, a partir daquele momento eu integrava a última geração da Terra. Como a população mundial estava estimada, à época, em pouco mais de 8 bilhões de habitantes, o grupo não era seleto o suficiente para justificar grandes comemorações ou afrouxamentos dos limites éticos na forma de se viver. 

Não, ainda não era o caso de se libertar das normas e das cartilhas, pelo menos não por enquanto. As consequências da natalidade zero seriam sentidas à médio prazo e, apenas dali a 70 anos, o cerco se fecharia ao ponto de, paradoxalmente, o planeta se tornar grande demais para os escolhidos, para o clã da resistência, herdeiros de tudo e testemunhas de um mundo praticamente desabitado. Estes sim, os pontuais participantes de um reallity show que teria o planeta como fronteira, teriam que arcar com as delícias e desventuras daquele cenário.

Apenas 15 dias após o decreto, os primeiros dados começaram a ser veiculados por agências de notícias internacionais: 850 mil suicídios, 2 milhões de abortos espontâneos e uma leva de relatos curiosos que davam conta de corpos de bebês pela metade, vítimas da proibição de nascer em pleno trabalho de parto. Estes nasceram a meio termo, logrando êxito apenas na parte do corpo que já estava fora do ventre no momento exato do decreto, e até agora não se sabe se de fato estão vivos ou mortos. 

Em poucos anos, a lista de viventes sofreu significativos decréscimos por conta da manutenção das fatalidades da vida, do vigor da morte, das enfermidades impiedosas, mas principalmente pela incapacidade do ser humano de administrar  tanto peso e tanta responsabilidade. Teve neguinho confundindo natalidade zero com morte agendada e, no desespero, muita gente foi morrendo antes mesmo de chegar o dia, atestando a inabilidade do bicho pensante em lidar com as grandes questões do existir e do deixar de ser.

Transcorridos 38 anos do decreto, no auge dos meus 56, uma galopante e esperada crise econômica estourou com força integral: consumo reduzido, demanda tímida e produção abalada. Resultado: milhares de indústrias fechando as portas ao redor do mundo, desemprego em massa e insuficiência de mão de obra para os trabalhos que exigem do corpo a vitalidade cada vez mais escassa na população já envelhecida. 

Em outras áreas, acabaram os esportes de alto rendimento, não se produzia mais contra-cultura, todas as rebeldias perderam suas causas. O público perene consagrava os mesmos artistas de sempre e ninguém foi capaz de suceder a um Faustão cada vez mais Hebecamargueado nas tardes de domingo. Os garotos prodígios tornaram-se cabeças de bacalhau e Justin Bieber virou um alcoólatra barrigudo.

O mundo foi se tornando um caos. Os recursos naturais estavam lá, proporcionalmente cada vez mais abundantes, porém os humanos que restavam iam ficando menos aptos a explorá-los. As atividades pesqueira, agropecuária e extrativista já demandavam, nos meus 70 anos, aptidões físicas inexistentes não só em mim, mas na maioria das pessoas que me cercavam. 

A humanidade experimentava as dificuldades de se obter o básico num ambiente de fartura, onde tudo estava lá, disponível e abundante, e pouca gente conseguia estender a mão para pegar. Inevitavelmente, em um processo de seleção natural, os menos velhos foram se mantendo vivos e já não restava tanta gente assim em quem eu pudesse reconhecer experiência maior que a minha. E assim eu fiquei entre os 10 últimos humanos do mundo. 

Concluímos que duraríamos mais tempo vivos se nos juntássemos e somássemos esforços, o que tirou totalmente o sentido de qualquer competição ou degradação mútua. Não víamos vantangem em acelerarmos uma destruição que inevitavelmente nos arrebataria, quão mais independentes optássemos viver. Aprendemos, ao contrário disso, a lutar pela sobrevivência do outro como condição única de prolongarmos ao máximo o bem estar de cada um. Já não tinha uma fronteira bem definida entre particular e privado. 

Quando só restaram 10 pessoas no mundo, a relação entre nós tornou-se primordialmente intensa. Ao ponto de compensar a imensidão de coisas que extrapolavam lá fora. Com isso o grupo se fechou fazendo jus à verdade de que não existia ninguém além dos que ali estavam. Por impulso, de forma espontânea, a verdade era praticada diariamente com prazer. Nâo havia comportamentos superficiais e mediocridade nas relações não cabia ali.

Sabendo que éramos nós 10 e mais ninguém, cada um foi integralmente tudo o que era e se doou para o grupo sem fazer força. A única coisa que fazia sentido, naquelas circunstâncias, era o apego à verdade e à intensidade dos gestos, olhares, toques e conversas. Estávamos unidos pela única certeza que se tem no dia em que se nasce. E diante disto, vivemos da melhor maneira possível um mundo que era só nosso. 

O grupo de 10 foi se tornando de 9, de 8, de 7, e ao passo que isso ia avançando, eu lamentava, com os reflexos cada vez menos apurados, as tantas oportunidades que desperdicei ao permitir que coisas - ou até eu mesmo - fossem mais importante que as pessoas ao meu redor. Desejei ter um último contato com a minha professora de faculdade para abraçá-la e devolver-lhe a razão na questão da prova. Àquela altura da vida, qualquer desencontro de cálculo  não fazia o menor sentido.
























5 comentários:

De tudo um pouco disse...

Hugo,

Seu talento com as palavras é latente. Vou montar uma editora para produzir seu best seller e ficaremos milionários... Abraço e sucesso, torço muito por você, irmão!

Dinny disse...

estarei lá, quando do lançamento do livro, para garantir meu autógrafo. Textos lindos e sensíveis; como poucos...

Unknown disse...

O medo do tempo é o mesmo, assim como Pascoal, Domenico e o último homem da terra são um único.

Um homem em um mundo cheio de pessoas, possibilidades e futuro, mas para esse homem o tempo já passou e só lhe restou uma canga. Ou só lhe resta o medo. É o mesmo homem, único representante da última geração da terra, a quem só restam lembranças.

Eles são um só: a solidão é sempre a mesma.

E paradoxalmente, nunca se está sozinho, na solidão.

***

Melancólicos, seus textos. Mas eu gosto, há muito de melancolia em minhas verdades.

Ah, demorei, mas RTei. Só queria ler antes.

Igor Improta Figueredo disse...

Mto bom seu blog meu querido, sabe usar bem as palavras, escrever ainda é a melhor terapia... passe lá no meu tbm, ficaria feliz com sua visita!

Worsley Pêpe disse...

Parabéns meu primo!
Sua inteligência me encanta, seu carisma me inveja e seus pensamento me encoraja para que eu possa um dia chegar ao inicio de uma sabedoria tão deslubrante como a sua!.
Imensas Saudades!!!!
Worsley Pêpe