Tobias já não quer viver só.

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Tobias recebeu pelo correio a encomenda enviada por sua tia-avó e abriu o pacote com o descuido característico dos destinatários pegos de surpresa. No interior do caixote de papelão, encontrou um jogo de quebra-cabeças com 967 peças. Uma análise mais minunciosa da embalagem revelou ser o mesmo mostrado dois dias antes na reportagem de capa da maior revista semanal do país, que o vendia como o mais interessante brinquedo infantil de todos os tempos.

De Dona Lirina, o rapaz conhecia a fama de ser uma entusiasta de grandes descobertas, tarada pela origem das coisas e, principalmente, profunda estudiosa das redes de influência tecidas no interior das estruturas familiares. Tendo essas referências sobre a senhora, Tobias entendeu de imediato que aquele embrulho representava muito mais do que um presente simples de uma tia distante, a despeito de sempre ter se achado bem diferente dela e de todos os outros membros da família. Sem saber a real intenção do presente, partiu para a montagem das peças na esperança de que a sua conjugação desembalasse o segredo daquela correspondência misteriosa.

A estratégia inicialmente desenhada não apresentava grandes novidades: separar as peças por cores, texturas e tonalidades para só então ensaiar os primeiros encaixes. Já esse movimento inicial foi suficiente para Tobias enxergar o desafio: a perfeita montagem daria forma à foto de uma família reunida, com imagem desbotada de fotografia antiga e das que patriarcas gostam de exibir em paredes de sala de estar. Agrupadas as peças em cinco blocos principais, passou à etapa seguinte de unir as peças limítrofes e ir montando o mosaico aos poucos.

À medida que avançavam os encaixes, o moço ia percebendo que não tratava-se de um clã qualquer. Os rostos familiares iam revelando-se a cada bloco montado, provocando nele o choque do reencontro com primos, tias, tios e demais parentes alheios ao convívio mais próximo por conta do afastamento que a geografia impõe.

A retrospectiva da sua vida desenvolvia-se paralelamente ao avanço da montagem. Quão menor era o número de peças soltas pelo chão aguardando o correto endereçamento, mais avançava a narrativa da sua trajetória dali pra trás. Reviu Grauçá, ao lado da tia Tulipa, sua fogosa esposa. Relembrou as inúmeras vezes em que flagrara os dois aos amassos na escuridão do amplo corredor da casa da vó Betina, enquanto metade da família dormia no chão da sala após o almoço dominical e a outra metade resistia heroicamente, no mesmo chão, à grade de programação do Temperatura Máxima. Reencontrou Maneca, sempre posando com sua boina preta com aba pra trás e camisa listrada, que era como teimava com mais propriedade ser um dos Dominós. Encarou a pequena Márcia, sua prima caçula recém-nascida na época da foto e riu ao lembrar dos colans usados por ela em suas atuais apresentações de comédias em pé. Até Crisópoto, o cachorro que, portador de um TOC de limpeza, não resistia a nenhum jato ou poça d´água, apareceu carregado por Dena, a idosa mais rabujenta que já vira na vida. Como acontecia sempre que Dena aparecia nas suas lembranças, rememorou a ocasião em que ela levou toda a família a gargalhadas coletivas ao declarar só comer caranguejo em momentos de profundo descontentamento com alguma pessoa ou situação, pra transferir às patas do bicho a ira que àquela altura da vida lhe seria letal, se cultivada.

Um a um, os personagens da imagem iam reativando as memórias afetivas de Tobias, provocando nele a sensação esquisita de sair de si e ver-se de fora. Desta posição, o moço em questão parecia uma pessoa comum que, assim como todo mundo, era resultado de uma complexa teia de influências e relações, perspectiva sob a qual sempre analisava as pessoas ao seu redor, mas que quase nunca aplicava às raras vezes em que se aventurava nas trilhas da auto-análise. Tentou retirar todas as experiências familiares da sua história e imaginar qual Tobias seria formado sem esse repertório prévio. A 5 peças do final da montagem, a conclusão foi taxativa: não fazia a menor idéia!

O rádio-despertador sobre o criado-mudo anunciava, como quem fala sozinho, a promoção de alinhamento e balanceamento de pneus de uma oficina cujo nome Tobias não tinha a menor condição de ouvir, entretido que estava nas últimas peças. Vencido o desafio, só na manhã seguinte, ao entrar em casa e olhar para o chão, percebeu o arremate do brinquedo. De longe, mais do que uma foto de família, outra imagem se formava: uma caricatura do seu próprio rosto.

Aproximou-se do centro da sala onde armara o quebra-cabeças com uma vontade enorme de voltar no tempo e reviver tudo o que lhe aparecia nas recordações mais remotas. Sentiu-se pertencente àquelas memórias e propriedade daquelas pessoas. Sentiu sua família como parte de si e ele como parte dela. Imaginou Dona Lirina deliciando-se a 1.200 km dali com o êxito do presente e deixou escapar um sorriso sincero no canto da boca.

E desejou viver menos que os seus pais...

1 comentários:

Mãe para Mães disse...
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