O homem que não conseguia jogar as coisas no lixo.

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Havia um homem na Rua de Baixo da Vila Leopoldo que não conseguia jogar as coisas no lixo. Meninos de rua, catadores de papelão, prostitutas, débeis mentais, senhoras, senhores, vendedores ambulantes, enfim, todos daquela região do subúrbio paranaense sabiam de cor a personalidade inusitada do morador da casa salmon e azul. Sabiam e faziam questão de testemunhar de perto, a cada vez que o homenzarrão tinha que se desfazer de um objeto gasto pela mania implacável que o tempo tem de sempre andar pra frente. O seu sair de casa em direção à lixeira com o objeto em mãos, seu jeito de andar curto e desajeitado, olhando pra baixo como quem pensava na vida já sem muitas forças, e como quem deixava claro que a qualquer momento uma meia-volta podia acontecer, caracterizavam as passadas mais sofridas que a humanidade testemunhou. Era como se caminhasse de encontro à morte, ou como se estivesse voltando de meses num deserto seco. Uma batalha entre ir para frente e voltar atrás. Torto, fraco, doído. Uma verdadeira atração para o público que, somente por ser público de eventos como aquele, já demostrava com isso que não era lá dos mais atarefados.
- Olha o homem que não consegue jogar nada no lixo! Hoje é dia! - Gritavam a molecada escondida atrás dos muros que limitavam a Via Crucis daquele indivíduo, em meio à gargalhadas altíssimas.
Os moradores mais antigos do bairro, para os quais aquele ritual já não era novidade, se limitavam a rir um riso cotidiano, daqueles que pouco sai de dentro do peito e menos ainda vai para os dentes. Os donos dos restaurantes, botecos, padarias e farmácias da Vila Leopoldo, todos chegavam às portas dos seus estabelecimentos, intervalando o atendimento aos clientes, só pra ver o homem passar.
O ar de diversão coletiva só não era compactuado por Dona Marta e Dona Gegê, duas irmãs cujas soma das idades totalizava 147 anos, e que passavam dias inteiros tricoteando ao ar livre, sem nenhuma linha, tecido, agulha, ou qualquer outro instrumento que desse a entender o sentido denotativo dessa atividade. Para as duas, dia do homem jogar coisa no lixo era dia extremamente triste. Pondo de lado o fato de serem duas das mais anciãs da Vila, e o elevado grau de sentimentalismo que decorre disto, o comportamento das velhinhas perante o protagonista da cena era de uma cumplicidade ímpar. Paravam o tricô, esqueciam um pouco a vida dos outros, e choravam reverentemente a passagem do homem.
O que chamava a atenção era a verdade dos choros de Marta e Gegê. Era como se aquele homem trouxesse à tona, a cada vez que passava, as lembranças mais viris das suas vidas. Como se observá-lo fosse reviver cada perda, voltar a abrir mão das coisas boas que tiveram que ser abandonadas no passado, re-transitar entre as avenidas que construíram as velhinhas, tais quais se tornaram.
O homem que não conseguia jogar as coisas no lixo significava muito mais para elas, do que para qualquer outro curioso. Mais do que um esquisitão excêntrico, ele era o símbolo das decisões tomadas, a linha tênue entre o orgulho e o arrependimento. Trazia consigo a possibilidade irreal de voltar no tempo, agarrar amores, abandonar bibelôs, queimar ursinhos de pelúcia. Fazia, enfim, as velhinhas pensarem em tudo o que foram e deixaram de ser, tudo o que foram e continuaram sendo até então, em todas as mudanças que passaram e, principalmente, por todas as que não passaram. Vê-lo era ver as possibilidades de futuro que não se descortinaram a partir de algumas decisões que marcaram suas vidas. Umas tomadas, outras não.
Já o homem passava por risos, choros, gargalhadas e provocações absolutamente da mesma forma. De tão abalado com a dor que sentia, cruzava inabalável as reações que provocava. O momento era só seu, não enxergava ninguém mais. Não que fizesse isso em resposta a quem não conseguia enxergar a sua dor, muito menos em atitude de proteção, frente as possíveis reações do público. Nada disso. Se assim ele procedia, era tão somente porque ele não conseguia ir de outro modo. Nele não havia frieza suficiente para arquitetar uma indiferença.
Seu andar era acima de tudo uma marcha cambaleante. Marcha de empate, de quem sabia amar intensamente, de quem teimava em desejar pra sempre, mas que por isso mesmo tinha sérias dificuldades em receber de braços abertos o que haveria de vir. Seus olhos se limitavam ao chão, ao objeto gasto e à sua vida sem ele.





2 comentários:

Ana B. disse...

Meu pai não conseguia jogar as coisas no lixo. De roupas velhas e não mais usáveis a caixas de acarajé-de-supermercado, ele guardava tudo. Embalagens de sabão em pó, palito de fósforo queimado, palito de picolé usado, sacos plásticos de toda sorte, lâmpadas queimadas, pilhas usadas, comida estragada, remédios e produtos de limpeza muito além do prazo de validade... Tudo.
Não se tratava de uma opção; era, de fato, uma condenação. Desfazer-se de algo, mesmo que fosse uma casca de banana, destinada ao fim último de todas as cascas de bananas, por alguma razão - sentenciada em um tribunal perdido entre o Id e o Superego - causava-lhe uma enorme dor.
Arrumar, categorizar, classificar, re-classificar, guardar em caixas, gavetas, armários era seu ritual de libertação; era organizar a própria vida, guardar os fatos em caixas e acessá-los quando quisesse. Era simular o controle do que passou, já que o porvir não cabia naquelas pastinhas de 1,99. Era ter segurança.
A casa de meu pai era antiga, daquelas com teto alto, corredor sombrio e quintal no fundo, e quando não havia mais espaço para o passado, meu pai costumava construir mais um cômodo para manter seus pertences. A criança que fui chamava esses lugares de “quartos-de-bagulho”, e eles me pareciam divertidos, mas hoje entendo que para meu pai eram verdadeiros templos, lugares onde ele podia repetir mais e mais vezes seus rituais de libertação.
A adolescente que eu fui não gostava desses hábitos de meu pai, e outras pessoas também não. “Joga fora esse lixo, isso te faz mal; tem poeira e você já está em uma idade avançada”... Ele respondia, ironia pincelada com as cores de quem se sente incompreendido: “Jogar fora pra quê? Deixa aí. Quando eu morrer, vocês vão se divertir limpando”.
Há quase um ano eu não ouço mais suas ironias. E há quase um ano vou regularmente à velha casa, limpar um pouquinho a cada fim de semana... São décadas de lixo acumulado, mas também de memórias guardadas. Em meio ao lixo, eu descubro pedaços preciosos da vida e da personalidade de uma pessoa que, por ser meu pai, paradoxalmente, eu não conheci bem.
À parte o pai-general, existia o cientista, o engenheiro autodidata, o agricultor, o bon vivant, o humorista, o aventureiro-viajante, o generoso e até mesmo o poeta. A cada livro resgatado, a cada foto, bilhete de passagem, poema velho de caderno, em cada propaganda de pasta de dente dos anos 30, eu vou descobrindo um pouco o homem que ele foi, e que sua atitude patriarcal não me deixou conhecer melhor.
Enquanto vivo, meu pai jamais permitiu que tocássemos em suas “relíquias”. A curiosidade infantil me fazia invadir o espaço sagrado algumas vezes, escondida. Não foram os esporros de trovão, instantes depois das arriscadas “invasões”, que mataram as minhas iniciativas, mas o silêncio que se seguia aos berros e que parecia infinito.
Fui crescendo, sem mais vontade de invadir aqueles espaços, e aos poucos compreendi que aquilo representava muito para meu pai sua condenação e sua libertação.
Ironicamente – ou inevitavelmente - o ritual de meu pai é agora o meu ritual, às avessas. Limpar, separar, jogar fora e guardar todas aquelas coisas, mais que uma necessidade prática, é construir sentidos. E de algum modo, me aproximar dele, como nunca pude antes.

Unknown disse...

Apesar de não estar na posição de que minha idade somada com a de alguém dá 147 anos, seu texto me disse muito. talvez um dia eu escreva algo sobre o fato d'eu ser uma mocinha que não consegue jogar as coisas no lixo.

bjo!