A pedra no sapato.

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Àquela altura da caminhada, meu sapato já não era aquele encouraçado legítimo que havia comprado na loja especializada de Brotas. Mas também, pudera: que calçado suportaria o ritmo das minhas andanças quase maratonísticas pelas vielas e avenidas da minha cidade natal? Estava ele gasto, arranhado, disforme em relação à sua silhueta original e assim era justo estar. O preto vivo e lustroso da ocasião da compra se transformara naquele cinza cor de gelo que então se apresentava às vistas saudosas deste andarilho errante. Cadarços finos, fragilizados pela ação da natureza que transforma quase tudo em coisa gasta, à medida que o tempo avança. O bico denunciava as pancadas tomadas, os arranhões dos atritos e a inclinação para cima que vem do meu pé torto nessa direção.
O caminho optado era dos menos fáceis de percorrer, não prestava nenhum favor aos menos favorecidos. Para quem quisesse atravessar a trilha na qual eu estava, era de bom tom possuir uma razoável capacidade de viver em abstinência, se desprender dos próprios sentimentos e possuir um porto seguro que segura. Era frio, escuro e se houvia gritos de socorro. Tudo isso dentro da minha própria cidade. O meu sapato naquele estado era empecilho, mas estava longe de ser o maior óbice. É que havia uma pedra dentro dele. Pior que isso: eu não poderia tirá-la, já que a tarefa de andar obstinadamente rumo ao rumo não resistiria a uma parada, mínima que fosse, nem para tirar uma pedra de dentro do meu antigo encouraçado. Se eu quisesse chegar ao fim, a pedra haveria de permanecer lá, correndo pelo meu pé, arranhando, ferindo, machucando como prego enferrujado cravando em mão de Cristo.
Andava e olhava para os pés numa tentativa pouco racional de acabar com o incômodo que sentia. Não era dor simplesmente, era amputação. Sentia que avançava, que o início ficava cada vez menos perto, o que era, por si só, a única coisa capaz de não me fazer descalçar os pés daquela tortura. A pedra atingia minhas unhas, corria por entre os dedos, rasgava a sola, massageava meu calcanhar com a delicadeza de Golias. Em atitude pouco evitável, projetava a todo momento a cena do pé livre, banhado, curado daquela carrasca. Imaginei que imaginar não era a melhor saída, e findei as projeções, da mesma maneira que ninguem pensa num elefante rosa quando não se deve pensar. Eu precisava andar....

3 comentários:

Unknown disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

VIAJOU NESTE TEXTO HEY
vixe viajei tbm
inclusi te roubei sua ultima frase...

abração

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Tô ligada que esse texto descreve as andanças pelo árduo atalho cabula-pernambués (Chesf times). Só faltou a referência ao companheiro Rafa.