Como gato e rato!

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Certa feita um rato entrou lá em casa. Ninguém sabe por onde, ninguém fez muita questão de saber. Uma vez constatada a sua presença, os esforços estavam todos concentrados em localizar a sua pousada e despojá-lo como se faz com hóspede que não paga o referente ao serviço. Era apartamento térreo, com área de jardim ao fundo, quintal murado e a porta não vivia aberta. Como quer que ele tenha entrado, ele permanecia lá. Os indícios apontavam para isso, mais precisamente os indícios que a gente deixa quando o nosso processo digestivo funciona a todo vapor. O rato estava lá, ninguém sabia como, ninguém sabia aonde, mas estava.
As providências iniciais foram as usuais em situações como essa: multiplicaram-se os venenos, as tocaias, as armadilhas e as arapucas. O arsenal bélico caseiro, porém, parecia não dar conta do roedor, que entrava dia e saía dia, teimava em não aparecer esturricado em algum canto da casa. Dele, os únicos sinais eram os catabolitos fecais que continuvam surgindo, feito as aparições que Bin Laden nos proporciona, vez por outra, na CNN Internacional, de 30 em 30 dias.
O namorado da minha prima (com quem eu moro) tem uma mania (que eu até gosto) de perguntar as coisas, procurar saber, problematizar o que ninguém problematiza. E eu estava certa de que assim que ele soubesse do ocorrido, não sossegaria enquanto não reconstituísse a entrada misteriosa do mickey mouse nordestino lá em casa. E assim como não erra quem prevê chuva a partir de nuvens negras, eu não me equivocara:
- Como assim, um rato entrou na casa d vocês? Quem o viu? Quando? Aonde? Como é possível? Ele entrou por onde, pelo amor de Deus? Não pode, a porta vive fechada, o muro do quintal é alto! Rato radical, meu Deus? Escalador de muros? Existe isso?
O perguntador com cara de camaleão não cessava de perguntar, de achar esquisito, de cobrar respostas que nem eu, nem a minha prima, nem os meus tios tínhamos disponíveis, pelo simples fato de não nos interessar o esforço da catá-las nas prateleiras das nossas consciências. Para todos os moradores da casa bastava saber que ele tinha entrado, e que lá permanecia, e que isso, por si só, já solicitava a sua morte.
A questão é que pela primeira vez parei para pensar sobre a mania do namorado da minha prima. Do mesmo jeito que eu estava certa que nunca entraria naquele frisson interrogador caso algo semelhante ocorresse na casa do meu par, era no mínimo curioso perceber como a ausência de respostas dos moradores da casa agitavam ainda mais aquele rapaz. Era como se a inexplicabilidade do fato comovosse o estrangeiro, e a falta de comoção dos nativos o transtornasse ainda mais. Fiquei a elocubrar: pensar deve ser uma daquelas coisas cujos escravos não compreendem a possibilidade de existir gente livre. Para o cri cri, pensar deve estar assim como gostar de chocolate está para um chocólatra, ter simpatia pelo sexo oposto para um heterossexual e preservar a natureza para um ambientalista: algo naturalizado, quase essencial, cujos não-praticantes, ao se absterem, expressam seus extra-terrenismos.
Segundo a mente do pensador, o fato de nós (que éramos da casa) não termos ficado no mesmo quiprocuó dele (que era de fora) diante da curiosidade do ocorrido, era a expressão de uma estranheza quase que animalesca. Semelhança, imagino eu, com o que sente os apaixonados diante da ausência de qualquer reação que pareça óbvia nos seus namorados e namoradas. Não se aperriar diante da aparição de um rato num apartamento absolutamente imune a esse tipo de acontecimento era, para aquele cara, a denúncia de que algo anda errado, igualzinho a companheira que só sai com as amigas, e elege o sofá de casa como símbolo da ordinariedade do seu relacionamento a dois (ou a um, vai saber!) E a partir de então eu nunca mais enxerguei o namorado da minha prima com os mesmos olhos.
Cacete, como aquele cara devia conviver com as suas crises? Se com um rato na casa da namorada ele já padecia sedento de respostas, em que mar de sofrimento aquele cidadão não devia submergir a cada vez que não tivesse explicações para o funcionamento da sua vida, em questões mais "sérias" do que a invasão daquele bicho. Fico imaginando em quantas vezes da nossa caminhada não somos surpreendidos pela entrada de ratos, zebras, girafas e até elefantes em nossas almas, quando imaginamos que os muros são suficientemente altos, as portas estão devidamente fechadas e os nossos jardins interiores não atraem invasores do tipo. Quantas vezes nos invadem, quando achamos que não há brechas? E aí, nesses casos, qual a performance do namorado da minha prima? Tive dó da dor que eu nunca senti, mas que dava para imaginar como devia ser forte para ele nesses casos.
E quando os conselheiros e analistas de plantão ousassem disponibilizar respostas prontas, simplificadoras ou simplesmente o aconselhassem a não pensar tanto nas coisas, recomendando que apenas usasse veneno e esperasse a morte dos corpos estranhos? Que resposta ele poderia dar, meu Deus? Ele riria, por já ter pensando em tudo o quanto qualquer um pudesse chegar a ele e dizer, em tom de novidade? Ele choraria, por descrer na viabilidade de alguma tentativa de auxílio surgir efeito?
Supor a angústia daquele namorado daquela minha prima (sim, eu tenho muitas, e elas tem muitos) foi me angustiando. Era como se eu começasse a ver uma pessoa nele que eu nunca vi, é como se as minhas vistas estivessem se descortinando diante de alguém novo, e o meu refletir fosse dando forma a um ser humano nunca antes percebido por mim. Pude perceber a prisão de alguém que está fadado a levar a vida mais a sério do que ela suporta.
O rato morreu depois de um tempo. Apareceu envenenado dentro do fogão, revelando que estava muito mais para Sadam do que para Osama. Como era de se esperar, o cara perguntou tudo o que dizia respeito àquela morte: local, estado cadáverico, circunstância da constatação, encaminhamento dado ao corpo e estado de espírito dos moradores da casa, uma vez morto o rato. E também como era de se esperar, o questionador haveria de continuar se batendo em suas correntes invisíveis, a cada resposta repleta de uma paz que ele nunca teria:
- Normal, cara. Morreu, morreu! Ninguém ficou conversando muito sobre isso não.

4 comentários:

Unknown disse...

E eu que pensava que os ratos só aborreciam por trazer doenças. Mas parcem incomodar mais os questionamentos.

***

Talvez ainda não com ratos, mas já aprendi a conviver com besouros, gambás, capivaras, lontras, aranhas, baleias, girafas - e até os muitos camaleões - que invadem o jardim da minha alma, que não é zoológico, não poderia mesmo sê-lo.

Deixo os bichos soltos.

Procuro as brechas por onde entraram, as tocas onde se escondem, mas é mais para brincar com eles do que para evitá-los. Como uma criança encantada com o sapo, porque ainda não ensinaram a ela que o bicho é feio.

Que buraco serviu de passagem eu quase nunca descubro, mas me angustio e me divirto pensando nas possibilidades.

Alguns bichos não dá para alimentar, eles crescem e ficam perigosos, cheios de tentáculos, garras, trombas e interrogações. E não há alimento que chegue, e o processo consome e consome.

Acho que criei uma Reserva ambiental de inquietações.

***

pergunta: quem escreveu esse texto foi o camaleão ou a prima da namorada do bicho?

Unknown disse...

P.s.: Mono apresentada = texto postado.

Depois quero saber dos resultados.

Anônimo disse...

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Herbert Pimentel disse...

Muitas vezes o bichinho que nos corroe a alma se vai, como no caso do ratoDAM. Mas, algumas vezes, mesmo depois de morto, o espírito do pobre bichinho terrorista nos atormenta os sonhos e nos faz perceber que o estrago que fizeram enquanto passeava pelos cantos da casa, sabotando todas as nossas armas para aniquila-lo, não tem mais reparo, ou demorará muito para voltar a normalidade. E o pior disso tudo é que se não descobrirmos de onde veio aquele inimigo, outros poderão fazer o mesmo caminho, e ai, talvez seja tarde demais para fecharmos todas as brechas deixadas.

Infelizmente, quando não se tem uma medida, não se sabe exatamente se adicionamos mais, menos, ou o suficiente para termos a certeza de que tudo que virá adiante não será mais tão devastador.