A mulher que tinha alergia ao mundo

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A mulher que tinha alergia ao mundo já não sabia o que fazer com os constantes e generalizados incômodos que sentia a partir de tudo à sua volta.

Desde criança conviveu com algumas pessoas portadoras das mais diversas alergias: uns não podiam comer camarão, outros exporem-se ao sol, poeira ou frio, tinha também os que não se davam nada bem com ácaros e picadas de moriçocas e até gente que não podia saber dos gols do Bahia. Os últimos eram os mais sofridos, brotavam-lhes brotoejas o tempo todo.

Mas o fato é que ninguem até então tinha ouvido falar de uma pessoa que congregasse em si a cartela completa das alergias. Fisiológica e psicologicamente, qualquer realidade fazia Ana agonizar.

Ainda nos tempos de ginásio, passou por um tratamento de choque realizado pelo seu querido professor de matemática. Ele, que passara 3 anos aplicando regularmente colírio nos olhos com o intuito de ver o mundo de outra maneira, fazia das tripas coração para convencer a moça de que o real é uma construção e, enquanto tal, não necessariamente existe. A didática consistia em tentativas de condicionar o organismo da alérgica a não processar as coisas vistas, ouvidas, cheiradas e sentidas como elementos de um mundo exterior a ela. 


O professor sabia que a alergia é uma reação do corpo. E Ana precisava perceber a contribuição dada por ela própria a tudo o que o seu sistema perceptivo apreendia e classificava como, supostamente, conteúdos fabricados a priori. Na mente do professor, o desestranhamento do mundo era a receita para livrar a aluna das suas dores.


E assim foi durante todo o tempo de escola. As reações alérgicas da garota foram diminuindo proporcionalmente à compreensão (ou à crença) do mundo como uma fabricação de suas representações. Até chegar o momento em que a estabilzação de suas alergias atingiu um grau absolutamente satisfatório.

Obviamente, Ana teve recaídas durante o processo. Certa feita, num fevereiro de férias, esqueceu que o sol não existia e começou a acreditar que a bola amarela do céu estava realmente lá, queimando sua pele. Imediatamente se travestiu de peixe-boi, tamanho o inchaço no rosto e a textura que lhe tomou a pele.

Outra vez, em beijo tórrido com o seu amante 48 anos mais velho, Ana teimou em achar que aquela gengiva lisa não podia ser obra da sua mente. Levou o banguelice do velho a sério e interrompeu o beijo aos vômitos, causando um frisson nas câmeras VGA de plantão.

Tudo acontecia da maneira pensada pelo matemático. Enquanto Ana se percebia autora das imagens com as quais convivia, sua alergia generalizada tirava férias. Quando isto não acontecia, fazia hora extra. E assim ela levou sua vida até o ponto de assimilar o mundo como uma extensão total da sua capacidade de criar. E contra isso seu corpo não havia pensado instrumentos de defesa até então.

Entretanto, a paz não fez morada nela. Experimentou o dissabor da substituição das angústias, afinal desconfiava em tom de certeza que aquilo não duraria muito tempo. No fundo sabia que, caso seu corpo realmente tivera sido formado com a improvável capacidade de detestar tudo, mais cedo ou mais tarde ele também protestaria contra si próprio.

Essa suposição se concretizou quando, já aos 28 anos, recebeu um diagnóstico médico elaborado a partir de manchas roxas em sua pele, atestando uma auto-destruição de células em estágio acelerado. Ana via se manifestar, a partir de então, uma alergia impetuosa a si mesma. Diante da notícia, já não conseguia mais levar aquela bizarrice a sério. Não lhe consumia a possibilidade da morte ou do definhamento gradativo. Não temia mais o possível futuro em uma cadeira de rodas ou em estado vegetativo. Naquele dia, a única preocupação trazida pela notícia de jaleco foi imaginar o doloroso tratamento ao qual se submeteria, caso fizesse questão de conservar o mínimo de vivacidade.

Àquela altura, catou o contato do ex-professor na agenda do telefone e lhe contou o ocorrido. Ele já havia abandonado o lecionado há alguns anos, depois que um vídeo no qual aparecia equivocando-se na resolução de uma equação simples ter sido publicado no youtube e isso render a capa do Correio da Bahia na época. Mesmo assim, fez questão de encontrar-se com Ana em uma sala de aula para saber mais detalhes daquela reviravolta. 

Após a explicação da ex-aluna, o professor confirmou aquilo que a agora mulher já desconfiava: o único caminho seria desaprender e ir de encontro a todo o processo de doutrinamento ao qual subjugou o seu corpo. Se a alergia da vez era um tiro no pé, a solução era, mais uma vez, deslocar o alvo. Só que agora era preciso inverter o fluxo, feito fazem os limpadores de quadra de vôlei. 

E aí Ana teve que entender, sob pena de não melhorar mais, que a realidade não é só uma obra da sua cognição, mas que também o movimento pode ser contrário. Ela precisava acreditar agora ser, ela mesma, resultado de toda a miscelânea de influências existente no perímetro das suas vivências.

Assim, ela foi de cabeça na empreitada de enxergar-se enquanto produto do mundo. Fazia sessões e mais sessões de auto-análise, forçando a barra para enxergar em si características que evidenciassem a ação do outro nela. Comparou fotos suas com a de sua mãe, interrogou incessantemente seus parentes mais próximos acerca dos hábitos familiares mais remotos, pesquisou os costumes dos argélios no intuito de descobrir o tamanho da diferença entre ela e as pessoas mais distantes.

Aos poucos foi notando a importância de certas instituições na formação daquela Ana que por ora se apresentava. A escolinha da qual foi cliente nos primeiros 5 anos da sua vida acadêmica, a Constituição do seu país, a Cartilha de fidelidade confeccionada em parceria com uma amiga top model e até o conjunto dos dogmas cridos por um amigo seu e que ela refutou veementemente durante os 28 anos de sua vida. 

Ana se viu nos outros e viu os outros nela. E assim seu corpo foi gradativamente sendo mais tolerante consigo próprio, possibilitando-lhe abaixar um pouco a bola daquele involuntário suicídio à prestação. 

Assim como na primeira cura, houveram recaídas, momentos em que a mente da moça processou tudo ao avesso, como a inesquecível visita do ex-colega de faculdade cabeludo. Ele, especialista em fazer cuscuz, chegara a sua casa com pose de Cheff infalível e poucas coisas no mundo a irritavam tanto quanto aquele ar de soberba que só ele era capaz de exibir. Sabedor que Ana gostava daquele prato tanto quanto Catarina gostava de Petrúquio no início da novela, o rapaz preparou o cuscuz sem dar chances de escolha à anfitriã e foi logo dizendo que, daquela vez, ela ia lamber os dedos e raspar a forma. Possessa, Ana disparou toda espécie de xingamentos contra o rapaz, fazendo questão de deixar claro que ela, na condição de visita, jamais viria a fazer uma coisa daquelas. Enquanto o cabeludo ria, Ana esbravejava palavras desacreditadas por ele, pois os 8 anos de amizade eram suficientes para saber que ela, dentro das sua especialidades, também não dava chances a ninguém, igualzinho ao que o moço estava fazendo.

A crise mais grave aconteceu durante uma conversa de desabafo com a amiga top model, no MSN. Cometeu a loucura de afirmar com todas as letras que era um caso raro no mundo de gente que anda pra frente, como se andar de ré é que não fosse incomum. Durante todos esses momentos em que Ana se achou autora dos próprios atos e comportamentos, sentiu seu organismo fraquejar e, percebendo com rapidez a moral na história, buscava imediatamente se concentrar na arte de não parecer autora de nada pensado, falado ou feito por ela. E pouco tempo depois via seu vigor ser restaurado.

Isso fez com que, para sobreviver, a menina que tinha alergia a tudo fosse, paradoxalmente, desenvolvendo uma capacidade de tolerância acima da média. 


Não há cura para Ana e ela sabe disso. Está fadada a reagir contra tudo. O que lhe resta é exatamento o que ela faz: administrar as suas alergias atuando com equilíbrio nos intervalo em que elas lhe dão folga. Entre as fases de aversão ao mundo e a aversão a si mesma, ela aproveita para respirar, num aprender e desaprender constante. E vai levando a vida: entre espirros, coceiras e inchaços.

5 comentários:

Nani disse...

Eu tenho um pouco de Ana... será que todos nós temos?

Muito bom ver vc de volta, amigo. Tá de parabéns, como sempre :)

Silvia Assumpção disse...

Vc sempre surpreende! Adoro isso (tambem!) em vc!
Parabéns! Muita coisa boa nessa cabeça!Eu adoro!

Ana disse...

Mas, Camaleão, daltônico que você é teve a ousadia paradoxal de me pintar com as cores mais fiéis?

Sinto um comichão de histamina. Sinto um arrepio nos meus Linfócitos T.

Preciso de uma réplica: se alergia é estranhamento, é também sensibilidade ao contato.

E se eu espirro, tusso, empolo o mundo na tentativa de expulsar esse ente estranho até pelos meus poros é porque ele se recusa a sair de mim.

Agora, com licença. Vou ligar pra meu ex-professor.

Parentese: Te contei que a mulher dele não está gostando das nossas conversas? Ciúmes. Sou alérgica a esse sentimento.

E o agravante: Nem consigo dizer oi para a referida. Toda vez que a encontro, como em uma ocasião em que a vi com o professor no cinema, tenho que sair correndo, porque me dá a pior das urticárias.

Deve ser o perfume barato. Ou o jeito de "escolhi viver uma vida medíocre, mas meu batom é Channel". Sim, com certeza é o jeito. Só de lembrar já empolo.

Unknown disse...

Oxi, essa história existe é?
Essa história é real, é?
Muito provável, quando e porque o real é uma construção de Hugo.

Ah, e recadinho pra Ana:

Ana, na impossibilidade de desestranhar-se do mundo, ou de desentranhá-lo de você - eu sei, amiga, é difícil - faça como eu: toma um polaramine.

Mas pare antes do fim de semana, pra conseguir molhar as palavras e lubrificar os pensamentos - o mundo vai continuar explodindo contradições dentro de você, mas você vai até sentir prazer nisso...

Um beijo na sua Imunoglobulina E.

Márcia Liguori disse...

Inacreditável!!! Não me refiro aos tipos de alergias da Ana, mas a sua capacidade de colocar em palavras estórias, sentimentos e fantasia.
Já falamos sobre isso, aposto todas as minhas fichas de feijão que isso te trará muita coisa boa.
Amei voltar a ler algo seu, isso é o bom (ou mal) da internet... não estabelece barreiras. Não pára não e sempre que possivel nos dá esse prazer de conhecer o que rola ai dentro d'oce.
Quanto a Ana: sempre me perguntei onde será a Matrix, o que criamos ou o que achamos que foi criado por nós. A velha pergunta dos biscoitos Tostines e entre o ovo e da galinha... Enfim, somos e fazemos o meio que vivemos. Vc faz nosso meio melhor com seus textos.
Beijo