A pista da esquerda e a mania de querer ser quem não se é.

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Quem dirige com frequência em Salvador conhece as nuances de um trânsito incrível. E, já há algum tempo, um dos absurdos com os quais nos deparamos rotineiramente pelas ruas e avenidas da capital baiana tem me levado a reflexões que vão muito além de radares de velocidade, semáforos queimados e desfile de agressões verbais regadas a ódio mortal.

O que leva os nossos motoristas a cultivarem e perpetuarem o nefasto hábito de dirigir lentamente na faixa da esquerda? O que motiva a deserção do lado direito das nossas vias? Fosse outra época, essas questões não me renderiam problematização alguma. Mas, nos tempos atuais, em que as flores da minha pele usam e abusam da uma primavera emocional que teima em não me abandonar, as ordinárias mesmices do dia a dia transformam-se, mesmo as mais corriqueiras, em convites irresistíveis ao exercício do pensamento, conferindo a textos como este suas reais condições de existência.

A minha tese de botequim repousa no embate entre imagem e essência, forma e conteúdo. Impressiona é como os Rubens Barrichelo´s dopados de Dramin acham-se no direito de ocuparem a, em tese, faixa de fluxo rápido. Mais do que isso, a maioria deles parece realmente acreditar que estão na velocidade correta. Quem já teve o enfurecedor desprazer de estar atrasado e ficar encaixotado atrás de um carro nessa situação, sabe que colar no fundo ou usar farol alto não adianta de nada. Em 90% dos casos, quem está desfilando na faixa errada nem percebe que tem um desesperado atrás de si reivindicando o direito de ser rápido no lugar que lhe é devido.

O superpovoamento da faixa da esquerda me parece refletir a série de equívocos dos autorretratos feitos pelos seres humanos. E isso não é uma questão regional! Ora, se a destra da pista é o local reservado aos condutores libertos da pressa generalizada no nosso tempo ou aos inábeis na tarefa de fazer o ponteiro do velocímetro atingir a marca dos "80 km/h", ocupar regularmente a faixa da direita significa, na semiótica do trânsito, assumir a posição do mais lento. E ser mais lento, na arena do asfalto, só não é pior do que admitir sê-lo.

Andar na direita, imagino eu, ofende mais por ser a publicização deste estado de vulnerabilidade. As pessoas fogem desta faixa porque ela é a reservada para os lerdos de plantão e como ninguém se acha um (ou pelo menos ninguém está disposto a admitir isso publicamente), a solução imediata é ocupar o lado esquerdo da pista porque ali a autoafirmação tona-se evidente, independente da velocidade com que efetivamente se trafega. É o local dos ágeis, dos competentes, dos mais preparados e é para lá onde vão todos os motoristas dispostos a transformarem as placas de seus carros em códigos de vitória e capacitação, ainda que, na prática, esse seja o único motivo deles se tornarem ridículos.

Tenho dúvidas quanto ao nível de consciência desse processo. Acredito piamente que muitos fogem da direita não apenas para fugirem do rótulo, mas por realmente se autoenxergarem habilitados a ocuparem o lado oposto. 

Resultado: à parte o fluxo de ônibus e outros carros pesados na faixa inicialmente dedicada ao fluxo lento, esta torna-se o local mais livre de uma via ampla, justamente pelo fato de todos a evitarem. E aí,
o que seria transtorno, passa então a ser conforto. Na busca pela afirmação ante a si próprio e ante o outro, motoristas esquizofrênicos correm  para o campo da exceção, superpovoando-o e, obviamente, transformando-o no reduto da regra. 

Se o trânsito realmente for uma espécie de representação viária das relações sociais, minha opção já está amadurecida: entre o desprestígio do rótulo de "lerdo" e o risco de ser Rubinho em pele de Vettel, podem me taxar! 

Mas notem: por onde eu vou está mais tranquilo!








1 comentários:

Nani disse...

Eu ja tinha notado isso, e na maioria das vezes é uma maravilha andar na faixa da direita, chego rapidinho =D