O ESTAGIÁRIO DE SOLEIL

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 - Amor, e se eu morresse?
 - Depende. Morte de que?
 - Morte súbita. Das que a gente está aqui e, segundos depois, não está mais.
 - Assim, sem aviso prévio?
 - Feito demissão anunciada por chefe temperamental.
 - Isso é até difícil de imaginar. 
 - Suponha que eu  me apoiasse num guarda-corpo, ele cedesse e eu caísse de costas, de uma altura de 3 metros e não me mexesse nunca mais.
 - Credo, homem! Por que você está perguntando essas coisas?
 - Interprete como interesse nas suas respostas.
 - Se você caísse e não levantasse mais, eu perderia o meu chão. Tão subitamente quanto o seu sumiço guarda-corpo abaixo.
 - E caso eu sacudisse a poeira, limpasse os vestígios da queda e me pusesse de pé, apesar das marcas?
 - Aí seria a vida se manifestando. É sempre assim mesmo, né? A gente cai, levanta, cai de novo, torna a se colocar de pé. E entre coices, quedas e recuperações a nossa história vai se desenhando. Entenda uma coisa: se a morte te visitasse pessoalmente e postergasse o carregamento, o susto se tornaria gratidão, eu teria o meu chão de volta, mas aí seria você a ganhar uma boa história pra contar.
 - Susto à parte, eu acho que seria uma boa experiência mesmo. Ver o final da vida tornar-se real deve fazer passar um filme na nossa cabeça. É como se, no tempo mental, a duração da queda fosse elevada exponencialmente, tornando possível, em frações de segundo, a retrospectiva de tudo o que se viveu até ali. Isso deve alterar os conceitos do individuo, fazê-lo repensar nas prioridades da sua vida, nas coisas a que realmente tem dado importância, onde tem depositado o seu tesouro.
 - Isso. É disso que eu tô falando.
 - A morte é um troço intrigante mesmo. Tem coisa que morre também, não é só gente não. E morre de repente, ante as nossas vistas, como se tivesse direito de usurpar tudo em que a sua presença nos transformou.
- E se eu não te amasse mais?
- Pá furada! Cão sem dono!
- Feito eu com sua morte?
- Feito equilibrista que não consegue ser efetivado em Soleil.
- Dos que caem muito?
- Pior: dos que não sabem cair.

2 comentários:

Márcia Liguori disse...

Querido,
O que dizer de seus textos sem me repetir???
Nesse vc juntou a sua criatividade com a sensibilidade "Los hermanica"... (e/ou vice versa)
Como não entender a profundidade da "pá furada"? Como não pensar no amor e deixar a alma sorrir ao ver "uma fila de pão"?
É verdade... ver a vida (nossa ou de quem amamos) chegar ao fim, como todo carnaval, deve ser demasiadamente louco...

Anônimo disse...

Deu uma saudade de seus textos...